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16 de julho de 2020

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O bordado pelo avesso

Por Sinval Farias

A viagem prossegue morna e o tempo se estira. A janela do ônibus reflete uma aflição desmedida. Paisagem estorricada, sequidão nos riachos, arremedos de bichos no esboçado dos pastos. O sol do quase meio-dia ignora a maquiagem, retocada de instante em instante. As poucas poltronas ocupadas seguem silenciosas. Quinze anos sem dar notícias. Uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu digerir rancores e reencontrar o sítio materno. Pela enésima vez, apruma-se na poltrona, revolve os cabelos, recruza as pernas. As horas riscam o azulado do horizonte. O trajeto remonta a figura do velho pai, olhos ressequidos, sobrancelhas grosseiras. Relembra o dia em que parou a lida e improvisou penteado numa espiga de milho. Apanhou para o resto da vida.

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09 de julho de 2020

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Diáspora

Por Oly César Wolf

Éramos família, ou algo muito similar a isso. Ficávamos sentados à mesa, calados, como se ela fosse um altar onde rezávamos pelo milagre da multiplicação do alimento, que era sempre menor que a nossa fome. Milagre nunca houve. Quanto a nós, bem, nós não. Apenas isso, somente negativa éramos, como vazios escavados na matéria, como ausências encarnadas em corpos magros. Aqueles eram dias duros que trincavam nossos dentes obrigados a roê-los. Por isso, por não vencermos mastigar a ossatura da nossa miséria, nos contentávamos em lamber o mole silêncio que vertia de nossas bocas semiabertas. Éramos quase pai e quase filho. Espírito não havia, muito menos santo. Mãe, irmãos, também havia, ou quase. Uns desacompanhando os outros, como se perfilados na vida e unidos pelos pés por uma pesada corrente de dias. Pai morreu, mãe também. Morremos todos naquele lugar, não de morte de fato, mas de insignificância. Éramos mirrados, […]

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09 de junho de 2020

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Dia de riso

Por Eriane Dantas

Corri para a janela atraída por uma confusão de vozes. Seria mais uma discussão entre a senhora do cachorro, o casal com o recém-nascido e a família forrozeira? Logo percebi que meus vizinhos estavam apenas tentando acompanhar a cantoria do morador do 504, que agarrou o violão e dirigiu-se à sacada. Não era a primeira vez que ele se metia a artista ali. Só que antigamente (quero dizer, até a semana anterior), mandavam-lhe o síndico, tacavam-lhe ovos e discavam até para o 190 quando ele se punha a tocar, de dia ou de noite. Nesse dia, seu talento intrigou os vizinhos. — Quando tudo isto acabar — gritou um deles —, você nos oferecerá um show de verdade, meu amigo. — Sim, logo poderemos estar juntos de novo — replicou outro. — Viva o morador do 504 — disseram em coro.

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22 de fevereiro de 2020

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Linhas tortas

Por Eriane Dantas

Meu sonho de criança era ser como minha mãe: uma mala elegante de rodinhas; queria viajar pelo mundo afora e fazer parte de momentos memoráveis. Como efeito colateral, me tornaria famosa, aparecendo em fotos publicadas nas redes sociais. Como sabemos, porém, a vida nem sempre é justa e às vezes vira o rosto para aquele que cedo madruga. O esforço, a base da minha filosofia, não garantiu a realização do meu sonho. Quem disse que podemos ser tudo o que queremos? Faltou sorte e, em vez de seguir a carreira de mamãe, tornei-me uma mochila. Ser mochila não era o objetivo de nenhuma das minhas amigas, e minha família, claro, não ficou feliz com a minha carreira profissional.

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10 de dezembro de 2019

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O medo da minha irmã

Por Eriane Dantas

Minha irmãzinha é capaz de enxergar um morcego terrível em uma inocente borboleta. Como todo mundo sabe, crianças de quatro anos de idade têm medo de tudo, mas Juju parecia mais medrosa que o normal. Certa vez, minha mãe deu boa noite, apagou a luz do quarto e fechou a porta, como fazia todo dia. Com a casa inteira em silêncio, a música que saía dos meus fones de ouvido se misturou a um sonho gostoso; eu era a rainha das fadas e dava ordens a duendes nanicos. De repente, a assembleia no jardim foi interrompida por um grito.

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06 de agosto de 2019

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Quanto tempo

Por Eriane Dantas

Ela não sabe há quanto tempo está ali, no mesmo lugar, vendo os mesmos humanos passarem dia após dia, com olhar fixo no horizonte, acelerados, como quem tem pressa de alcançar a linha de chegada. Deve haver uma recompensa ao final da caminhada de cada um, ela imagina, o pote de ouro no fim do arco-íris, como ouviu um sujeito dizer certa vez. Queria ela também receber aquele prêmio. Mas preferiria um pote de sorvete, a sobremesa intrigante que as pessoas tomam com uma careta sorridente. Ela não sabe há quanto tempo está ali. Tenta puxar pela memória, mas lá não há qualquer calendário ou relógio. Ninguém lhe ensinou quantas horas há no dia, quantos dias há no mês e quantos meses há no ano. Ela também não conseguiria calcular. Tem apenas a sensação de já ter visto o sol nascer e se pôr muitas vezes daquele ponto. Talvez tenham […]

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16 de julho de 2018

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Selma

Por Eriane Dantas

Um ruído irritante, como se alguém desse a partida em um carro velho, tomou conta do quarto e a cada segundo se tornou mais e mais alto. Não ouvia mais o tique-taque do relógio de parede nem o latido do cão do vizinho. E eram duas horas da manhã. Àquela altura, já tinha rezado uma novena em favor dos meus parentes, principalmente do meu marido barulhento. Conferi as horas novamente: passava das três. Se eu pegasse no sono naquele momento, dormiria por pouco menos de quatro horas. Da forma como meus olhos estavam, despertos como se eu tivesse tomado uma garrafa de café, sabia que passaria outra noite em claro. A solução foi encontrar algo para matar o tempo e chamar o sono.

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13 de julho de 2018

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Uma mulher que só queria esquecer

Por Eriane Dantas

Sabrina se alegrou por ser uma das primeiras ali, pois não queria mesmo encontrar alguém. Assim, poderia cumprir o plano de tomar alguns drinques sem companhia e voltar para casa tão bêbada que não pensaria em sua situação. Quem já não passou por uma situação que gostaria de apagar da memória de uma vez: uma desilusão, um fracasso, uma perda? Em momentos como esses desejamos encontrar um remédio que neutralize a dor e nos permita seguir vivendo como se nada em nossa vida tivesse se alterado. Esse é o caso de Sabrina, uma mulher que só quer esquecer. Ela pretende permanecer em sua existência solitária. Foge das conversas com a família e com os colegas do trabalho. Seu único desejo é tomar uma bebida forte que a faça perder os sentidos ao menos por alguns instantes.

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