O baú de Faustina se revelou para mim no primeiro dia da 3ª Feira Literária de Barra Grande, em Cajueiro da Praia, Piauí, em 27 de junho de 2024, em um dos bate-papos de lançamento de livros. Sua criadora, Valéria Silva, professora universitária que eu ainda não conhecia, lançava ali o livro de poesias Acenos da alma, e o mediador comentou sobre sua obra anterior.
No dia seguinte, participei de uma roda de conversa acerca da literatura produzida por mulheres, na qual se encontrava Valéria Silva, entre outras mulheres. Terminada a conversa, ela se aproximou de mim e me presenteou com um exemplar de O baú de Faustina, como se adivinhando o interesse que havia nascido em mim no dia anterior. Na dedicatória, ela desejou que a leitura me suscitasse “encontros identitários vários”. E eu posso adiantar que o desejo se realizou.
De volta a Brasília, resisti à ansiedade de abrir o baú. Tinha leituras iniciadas e planejadas e outros projetos para começar e concluir nos dois meses posteriores. Até que pude, enfim, ceder à curiosidade.
O baú de Faustina nos conta a história real de Faustina, mãe de Valéria Silva, e sua família. Poderia ser ficção, mas é o retrato da vida no meio rural teresinense, com suas agruras e sua luta infindável para levar adiante uma grande família.
A linguagem e as histórias vividas pelos personagens me transportaram para o interior do Piauí, o qual conheço, não de uma vivência diária, mas por ser o local de residência de parte dos meus parentes e o local de origem dos meus pais e, por consequência, um pedaço da minha própria origem. Acompanhar a saga de Faustina, de certo modo, foi como revisitar a história da minha família, das inúmeras mulheres que vieram antes de mim. Como a autora diz na orelha do livro, Faustina representa a “ancestralidade feminina rural que pulsa em nós, embora nem sempre percebamos”.
O uso da linguagem regional nos diálogos foi muito acertado. Por meio dela, imaginei os personagens como se estivesse sentada ao seu lado, observando-os conversar.
Faustina, como um grande contingente de mulheres do meio rural, em especial do seu tempo, lutou não só contra a seca, a pobreza e o abandono; lutou também contra um inimigo que ainda nos persegue: o machismo, que estabelecia limites extremos aos corpos e às vontades femininas. No entanto, mesmo que em pequenas doses, ela impôs algum querer, como quanto ao seu desejo de que ao menos as crianças mais novas estudassem. Assim como sua mãe, Damiana, havia feito anos antes.
E, para mim, um dos capítulos mais emocionantes do livro é o intitulado “Caçula sem regalias”, que descreve como Faustina se tornou aluna da classe de seu pai, Chico Branco, uma classe exclusiva de meninos. Isso por insistência sua, que espiava as aulas pela janela, e de sua mãe, que incutiu na cabeça do marido que a menina poderia e deveria estudar.
A união feminina apresenta-se também como uma resistência à organização patriarcal. Mesmo em um contexto desfavorável às mulheres e com tantas responsabilidades exaustivas, sem um mínimo de reconhecimento, elas se apoiavam mutuamente quando necessário, seja em uma enfermidade, em um resguardo, em celebrações religiosas ou nas atividades que garantiam o seu sustento, como a farinhada ou a quebra do coco babaçu. Essas últimas eram ainda oportunidades de socialização e de alívio da rotina.
Por outro lado, causa revolta a decisão unilateral do pai de Faustina a respeito do destino da filha, mas usei as lentes daquela época, daquela localidade, para entender a dimensão desse ato. Da mesma forma, eu o fiz para compreender a sujeição de Faustina naquele e em outro episódio e a incapacidade da mãe de mudar a sorte da filha. Não é nada muito diferente das histórias que conheço, inclusive na minha família, de mulheres que não tiveram escolha e foram obrigadas a se resignar à determinação dos homens.
O livro relata ainda a condição de retirante que marcou a trajetória da família desde que Chico Branco, o pai de Faustina, foi obrigado a migrar do Ceará para o Piauí. Ele era ainda menino e foi levado pela mãe, decidida a fugir do marido violento. A autora então reflete e faz refletir sobre a migração, que deixa um sentimento agridoce naqueles que saem de sua terra.
Eu me sinto um pouco assim, apesar de viver no Distrito Federal há 25 anos, o que representa mais que o dobro do tempo que vivi em Teresina. Não me sinto uma estranha aqui, porém tenho um laço forte com o Piauí, uma saudade da terra, uma emoção a cada vez que piso o solo piauiense, assim como aconteceu com Faustina em sua nova vida no Maranhão. Ademais, a ligação com a minha terra natal tem me inspirado cada vez mais a conhecer e a contar histórias de lá. E essa é mais uma razão que me aproximou de O baú de Faustina.
Embora a obra revele a batalha de uma mulher para sustentar seus numerosos filhos e enteados com escassos recursos materiais e pessoais, há também momentos de esperança, como Valéria Silva anuncia na sinopse. O final nos mostra um tempo em transformação. Além disso, a despeito das restrições de sua época e de seu lugar, do machismo estrutural e da cultura que a empurraram à repetição dos atos que limitaram sua existência, Faustina era uma mulher sábia e corajosa e plantou uma semente da mudança.
Terminei a leitura derramando as lágrimas que rondaram os meus olhos por todas as 434 páginas. Para além da história que me tocou de um jeito que talvez não consiga expressar em palavras, emocionei-me com o agradecimento de Valéria Silva à sua mãe no capítulo final. Esse agradecimento, presente no próprio ato da criação da obra e em cada uma de suas páginas, Valéria explicita ao reconhecer que os esforços de Faustina possibilitaram seu percurso acadêmico, tão distinto daquele que seus pais e irmãos puderam trilhar.
Se também quiser conhecer O baú de Faustina, mande uma mensagem para a escritora pelo Instagram (clique aqui).
Deixe seu comentário