03 de outubro de 2023

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Ser como Antígona ou Miep Gies

Em mim só manda um rei: o que constrói as pontes e destrói muralhas (Sófocles, em Antígona).

Antígona desafia o rei Creonte quando sofre uma injustiça e vai em pessoa ao palácio reconhecer sua desobediência. Não teme o castigo que virá daí; eu diria até que o deseja, pois ele comprova seu repúdio à tirania. “E me parece bela a possibilidade de morrer por isso”, ela declara.

Assim como Antígona, em nome do bem, da justiça, do amor pelos amigos, Miep Gies desobedece às leis nazistas. No seu caso, no entanto, não é ela própria a vítima. Poderia então virar as costas e seguir a vida.

Antígona e Miep são exemplos de personagens (uma real e outra fictícia) que olham de forma crítica para os acontecimentos, não se restringindo àqueles que lhe dizem respeito, e intervêm quando eles ferem a existência de alguém. “Não nasci para o ódio, mas para o amor”, Antígona proclama.

Não sou tão corajosa como Antígona ou como Miep. Não me lançaria a uma pena de morte e não sei se ousaria enfrentar o nazismo. Admito, porém, que certas consequências, ainda que me prejudiquem, são mais honrosas do que me fingir de desentendida.

Compreendo a exaustão de Miep Gies, seu surto, seu medo. Embora tenha o apoio do esposo e dos colegas de trabalho, sente-se solitária. Não é para menos. O perigo vive à espreita. Ao seu redor, nem todos discordam da barbárie. Pode confiar em pouca gente. Por isso, esconde-se, mente e até se afasta da família. Antígona se vê ainda mais sozinha.

Ambas têm tanta convicção sobre a causa que defendem, que não admitem opinião ou comportamento divergente. Ambas esperam dos outros mais do que eles podem ou querem dar; revoltam-se com o silêncio, o descaso ou a inércia de seus pares.

Ismênia, irmã de Antígona, confessa que não pode apoiá-la. Seu motivo não deixa de ser legítimo: a preservação de sua vida. “Não, temos que lembrar, primeiro, que nascemos mulheres, não podemos competir com os homens”, justifica. Não lhe parece inteligente medir forças com poderosos. Trata-se de um decreto real o que Antígona propõe descumprir.

Do mesmo modo, a melhor amiga de Miep escolhe não se envolver (apesar dos efeitos da guerra em sua vida, o holocausto em si não a afeta), escolhe manter-se viva, mesmo que para isso precise fazer negócios com o inimigo.

Antígona, um pouco intolerante e orgulhosa, revida: “Pois obedece então a teus senhores e glória a ti, irmã”. De forma semelhante, Miep prevê que a amiga não conseguirá conviver consigo mesma quando a guerra acabar.

O povo não concorda com a atitude de Creonte, seu filho preferido o informa. No entanto, não se vê esse mesmo povo diante do rei para dizê-lo. No caso da Segunda Guerra Mundial, não posso aceitar que tanta gente tenha apoiado o absurdo, a crueldade, a desumanidade. Tendo a acreditar que tenham optado por se calar.

A omissão, ainda que signifique a ausência de ação, não isenta de responsabilidade os envolvidos. Quem não agiu diante do extermínio de judeus e outros grupos minoritários ou diante da escravidão do povo negro, só para citar dois episódios sombrios da história humana, é tão culpado quanto quem cometeu esses atos. Quem hoje não reage ao racismo, à misoginia, à homofobia, por exemplo, compactua com esses males e não contribui para o seu fim.

É como naquele famoso ditado alemão, que vem a calhar aqui: se um nazista se senta à mesa com dez pessoas e ninguém se levanta, então há onze nazistas.

Quando vemos as histórias dessas duas personagens, temos a impressão de que seus esforços foram em vão: Antígona tem um fim trágico e Miep não alcança o objetivo de salvar os oito judeus do anexo secreto. Contudo, de um modo ou de outro suas ações causaram impacto. O movimento de Antígona desencadeia uma série de fatalidades na família do rei, que o levam a repensar sua decisão, embora com atraso. A atitude de Miep inspira tantas outras pessoas ao redor do mundo, mesmo depois de 78 anos, além de ter levado momentos de esperança para os amigos que tentou proteger (vale lembrar também que sem ela não conheceríamos O diário de Anne Frank).

Finalizemos então com uma frase atribuída a essa mulher, que pode nos motivar a levantar da mesa:

Até uma simples secretária, uma dona de casa ou uma adolescente pode, dentro dos seus poucos meios, acender uma pequena luz num quarto escuro.

***

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