De domingo para cá, vi tantas postagens de luto, feitas até por conhecidos e conhecidas que eu considerava conscientes. Elas retratam um Deus triste com o resultado das eleições no Brasil e se perguntam qual será o futuro do país. Vi cenas de gente vestida de verde e amarelo em meio a orações e lágrimas. Vi imagens de pessoas bloqueando estradas e pedindo intervenção militar.
Eu não entendo.
O candidato perdedor, que infelizmente ainda é o presidente do país, defende a liberação de armas e o fuzilamento de quem o critica, já declarou que sua especialidade é matar e anda com gente que não aprecia muito a paz (vide o cara que atirou em policiais e a mulher que perseguiu uma pessoa na rua com arma em punho).
Esse mesmo candidato apostou na mentira, no medo, na guerra, na desunião, em narrativas repetitivas (comunismo, corrupção, ideologia de gênero, aborto).
Ele não se esforçou para conter o novo coronavírus, nem se solidarizou com as famílias que perderam entes queridos para a doença. Pelo contrário, debochou de gente sem respirar, fez questão de sair às ruas e de incentivar a aglomeração durante a pandemia.
Homenageou um torturador em seu voto no golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, disse que uma deputada não merecia ser estuprada por ser feia, falou grosso com jornalistas, julgou que meninas de 14 e 15 eram prostitutas porque são venezuelanas e se arrumavam em um sábado à tarde. Para completar, declarou que “pintou um clima” entre elas e ele (um idoso de 67 anos de idade).
O candidato derrotado nas urnas chamou os nordestinos de analfabetos por votarem em seu concorrente e insinuou que são todos criminosos os moradores de favelas.
Ele é grosseiro com aqueles e aquelas que o contrariam, afronta a democracia (quantas vezes defendeu o regime militar ou ameaçou dar golpes?), desrespeita os outros poderes (quantas vezes xingou os ministros do Supremo Tribunal Federal — STF?), tentou criar o caos e desacreditar as instituições (quantas vezes questionou o sistema eleitoral?).
Fez comício em igrejas e o gesto da arminha em evento religioso, se assumiu um messias e usou o nome de Deus em vão.
Esse candidato, atual mandatário do Brasil, negou a fome, lutou contra o pagamento do auxílio para os mais pobres durante a pandemia e só o liberou por pressão do Congresso Nacional.
Passou quase quatro anos entre motociatas e passeios de jet-ski enquanto o povo ralava para comprar comida ou lutava contra os efeitos do vírus.
O candidato em questão desrespeita professores e artistas. Cortou verbas da educação e não criou uma política de verdade na área da educação (aplicativo de celular e versão de história ruim em PDF não contam).
Ele interveio na Polícia Federal para proteger a família, se envolveu em rachadinhas, orçamento secreto, esquema com prefeitos em troca de barra de ouro e nem sei mais o quê.
Usou o aparato do Estado para tentar se reeleger. Todo mundo o viu em campanha na celebração do 7 de setembro. Domingo mesmo, dia da eleição, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) fez uma operação incomum nas estradas, em especial na região Nordeste.
O quase ex-presidente disse que o país vai muito bem, obrigado, embora haja milhões de desempregados e milhões de pessoas passando fome, embora mais de 700 mil pessoas tenham morrido em decorrência da Covid-19.
Esse mesmo candidato recebeu mais de 58 milhões de votos, número superior ao de 2018. Seus eleitores dizem que votaram por patriotismo, para impedir a volta do partido político que terminou vencedor, por medo do comunismo, por amor a Deus ou para defender a vida.
Eu não entendo. Sinceramente não consigo entender: como se combinam Deus, amor e vida com armas, defesa da morte, discurso de ódio, deboche e descaso? Em que bíblia se lê que os diferentes devem ser exterminados ou que uma vida vale mais que a outra? De onde foi que se tirou que Deus mandaria como representante alguém com esse currículo? Em que parábola Jesus pregou que se deve andar armado e abrir fogo contra quem pensa de outra forma?
Após o resultado da eleição anterior, o atual Chefe do Executivo declarou que as minorias precisariam se curvar à maioria e que os insatisfeitos deveriam ir embora (ao estilo ame-o ou deixe-o da ditadura militar). Os anos seguintes confirmaram o pronunciamento: o que se viu foi um governante que se dirigia apenas a quem o apoiava. Não tivemos um minuto de descanso. Vivemos numa realidade paralela ou num eterno meme.
Domingo, ao discursar pela primeira vez, o novo presidente eleito indicou que vai governar para todos os brasileiros e todas as brasileiras, independentemente do candidato no qual votaram.
Qual das duas manifestações se assemelha mais a um discurso de paz, de união, de amor, de respeito ao próximo e à democracia? Para mim, isso é claro.
O resultado dessa eleição, portanto, trouxe alegria e alívio. Assim como outros 60.345.998 eleitores e eleitoras, estava exausta. Não sei se suportaria mais quatro anos do atual governo.
Em verdade, não perdi um parente próximo, não fiquei sem emprego, nem passei fome. Poderia dizer que minha vida vai muito bem. Mas não posso. Minha vida não vai bem nesse contexto que narrei anteriormente, minha vida não vai bem se tanta gente sofre, se o nosso país ficou desgovernado e se tornou um show de bizarrices. A minha situação não me cega para a realidade de vida dos outros.
Além disso, sou nordestina, de origem humilde, mulher, pedagoga, servidora pública e escritora. Confio no poder transformador da educação, da leitura e das artes em geral. Seria incoerente da minha parte defender um governo que vai contra o que eu sou e contra aquilo em que acredito.
Tenho um filho de três anos e meio, que nasceu já neste governo. Desejo que ele cresça em uma nação mais solidária e harmônica, que aprenda a conviver com pessoas diferentes. Não quero que ele viva em meio às armas, ao ódio, ao preconceito. Quero que tenha segurança, amor, educação, cultura. Desejo às outras crianças a mesma coisa que eu tento dar a ele.
Hoje, a minha felicidade se mistura à preocupação, a uma sensação de que não vai ser tão fácil vencer essa batalha, como se na virada do ano tudo fosse se transformar. Por um lado, tenho a esperança de que o Brasil saia do caminho da barbárie e recupere a crença na democracia tão em frangalhos, o que nos permitirá pensar nos reais problemas e voltar à luta por um país mais justo e igualitário. Por outro, para além das dificuldades econômicas que enfrentaremos, tudo indica que, apesar de o candidato ter sido derrotado e ter se isolado depois da confirmação do resultado da eleição, os seus seguidores continuarão a repetir o seu comportamento, e não nos livraremos de uma hora para outra de suas ideias toscas (isso se um dia nos livrarmos mesmo).
Não há avanço possível, creio eu, enquanto os brasileiros e as brasileiras não tiverem consciência de classe e uma visão minimamente coletiva, enquanto religião e política se misturarem, enquanto o direito de todos e todas à liberdade não for respeitado, enquanto o preconceito de cor e classe social nos submergir (sem que consigamos sequer admiti-lo).
Não me parece que esses milhões de votos no candidato derrotado foram depositados nas urnas por patriotismo, pela ameaça comunista, por amor a Deus ou em defesa da vida. Suspeito que tenham sido por egoísmo e concordância com essa ideologia. Mastigo, mastigo, mastigo, e não engulo a velha desculpa da aversão ao Partido dos Trabalhadores (PT). Não faz sentido. Por que tanto ódio ao PT e tanta condescendência com um chefe de Estado que não se preocupou com as nossas vidas? O que ele fez de tão magnífico para que os erros e os crimes que foram apontados durante esses anos (inclusive o de corrupção que os seus eleitores tanto condenam) sejam perdoados com tanta facilidade? Se não concordam com suas atitudes, suas opiniões ou seu governo (como eu ouvi de alguém no dia da eleição), como puderam, ao colocar na balança, optar por um governante desumano que não respeita o cargo que ocupa nem o povo brasileiro? Por que temem tanto o futuro se o presente parece um filme de terror grotesco?
O pleito, que terminou anteontem, foi histórico. Fico satisfeita em contar que fiz parte desse acontecimento e que me posicionei do lado certo. Sempre se diz que a história fará um acerto de contas. Eu não sei se é verdade. Na realidade, mais do que cobranças, mais do que vingança, espero que as pessoas que hoje se lamentam tenham a oportunidade de repensar, de rever suas concepções.
Quatro anos atrás, os enlutados de hoje comemoravam, e os demais (eu inclusa) sofriam. É curiosa essa noção de que alguns ganham e de que outros perdem ao final da eleição, como se isso se tratasse de um campeonato de futebol, como se não fôssemos, ao fim e ao cabo, parte de um mesmo país.
O próximo governo será para todos e todas nós, como próprio presidente eleito afirmou, e é responsabilidade de cada um e cada uma exigir ações e questionar se alguma coisa der errado. Temos muito trabalho pela frente, o início de mais um ciclo, um novo movimento do pêndulo. Mais do que nunca, é a oportunidade de investir em educação, uma educação crítica que tanto apavora. Só com ela os brasileiros e as brasileiras aprenderão a pensar livremente, a reconhecer e ocupar o seu lugar no mundo.
Deixe seu comentário