Às vezes, desconfio da minha memória de longa data. Modifico, recrio, dou nova versão às histórias que penso ter testemunhado? Ou a memória dos outros falha? Ou eles não viram o que eu vi?
O meu defeito é ter lembranças entrecortadas. Esqueço os detalhes: o lugar exato, os nomes dos personagens. Assim ninguém pode mesmo acreditar na minha narração. Em outra via, não me lembro de coisa alguma e, encabulada, respondo que “não, não lembro disso” ou “não, não sei quem é fulano” e ouço um desapontado “tu não lembra não?”.
Como se fosse hoje, avisto um conhecido da família, cabeleireiro de profissão, aparecer, na inauguração da praça do nosso bairro, vestido com roupas femininas e montado em um par de pernas que ninguém havia percebido embaixo das calças.
Ao comentar esse fato com meus pais, não soube explicar quem ele era, como se chamava, de onde o conhecíamos (nem eles estiveram comigo na inauguração da praça). Recorri à minha irmã, com quem eu fui ao evento, mas ela sequer se lembra daquela data.
Fiquei então encasquetada. Do que a minha imaginação é capaz? Eu criei mesmo essa cena tão nítida na mente? Por outro lado, como alguém esqueceria, em plenos anos 1990, a chegada de uma travesti em uma solenidade pública? Como uma menina de 9 ou 10 anos daquela época inventaria algo assim? Ou inventei isso faz pouco tempo?
Isso realmente me intriga. Vejo até a mim mesma, surpresa e, ao mesmo tempo, encantada. Aquele era um fato novo, tão escandaloso quanto motivo de graça, dado o contexto em que vivíamos, as imagens que nos chegavam pela TV (como o estereótipo da Vera Verão), a forma como nos ensinavam a lidar com o tema (com piadas e comentários “despretensiosos”).
Não sei por que voltei a pensar nisso agora. Quando os meus pais e a minha irmã não endossaram a minha lembrança, caiu sobre mim a decepção: isso provava que o episódio nunca ocorreu.
Queria me lembrar de todas as histórias que vivi ou presenciei e recontar cada uma delas. Queria ter um livro com os detalhes dos meus anos, mesmo aqueles que não foram tão positivos. Daqui a um tempo, o que aconteceu no presente me escapará, e talvez ninguém confirme que a minha memória não me prega uma peça.
Há gente que prefere fixar os olhos no futuro. Eu penso diferente. Não quero reviver o que passou – nem tudo foi tão colorido como o distanciamento temporal leva a crer. Olhar para a estrada por onde caminhei até aqui, porém, é importante para continuar caminhando. Toda história precisa de flashbacks. De vez em quando, retorno ao passado, mesmo com a visão embaçada, para entender quem sou hoje e quem poderei ser amanhã.
Sobre aquele personagem, é uma pena a falta de celulares e internet naquele tempo (ao menos em meu meio). Se tivéssemos, eu daria um Google agora e descobriria o que aconteceu naquele dia, veria as fotos da celebração. Como não desvendarei o mistério, tenha sido real ou ficcional, o cabeleireiro se tornará protagonista de um conto.
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