Ser piauiense é estranhar com freqüência a pecha da pobreza, do calor insuportável, do imenso curral, do rústico corredor de passagem; é ter que ouvir aqueles de ‘fora’ a perguntar: como se fala, o que se faz, quem é o conhecido de lá’ (Rabelo, 2008, p. 14, sic).
“Você conhece o Pedro?” — alguém questionou certa vez, ao saber que nasci e morei na capital do Piauí por quase doze anos. Eu respondi que não, mas por dentro minha resposta não foi tão calma assim. Que diabo de pergunta era aquela? Como poderia conhecer um ser humano, identificado apenas como Pedro, em uma cidade com milhares de habitantes?
Em um momento anterior, outro alguém me perguntou se havia carros nas ruas de Teresina, talvez com uma imagem semelhante àquela que os estrangeiros têm dos brasileiros: a de que vivemos como o Tarzan, em meio à Floresta Amazônica. Mas sobre o Piauí a imagem talvez seja a de ruas atravessadas pelo gado.
Essas situações não risíveis, mas não porque sejam de fato engraçadas e sim porque denotam a falta de conhecimento que se tem da minha terra natal.
Em 19 de março de 1969, uma crônica de Nelson Rodrigues, intitulada Nunca houve tamanha solidão na terra e publicada no jornal O Globo, provocou indignação nos piauienses. Nelson Rodrigues, em tom sarcástico, relata seu primeiro encontro com um piauiense, cuja timidez e humildade poderiam ser generalizadas para todo o estado. Porque, ele afirma, quase não se ouvia falar do Piauí, que seria mais abandonado que as outras unidades da federação também esquecidas e menos conhecido que a Lua.
Vamos aos fatos. Ontem, fui apresentado a um rapaz magro, tímido, o rosto cravejado de espinhas. Que ele fosse magro, ou tímido, não teria importância. Mas pergunto: — “Por que as espinhas?”. Sou homem de gerações passadas. E posso afirmar que, antigamente, todo mundo tinha espinhas. Hoje quem as tem? Só o Oduvaldo Viana Filho. A pele do brasileiro atual é admirável. E eu me espantei das espinhas que floriam do rosto do tal rapaz. Súbito, alguém sussurra: — “É do Piauí”.
O fato de ser do Piauí soou como uma explicação geográfica da timidez, das espinhas e das canelas (canelas de Olívia Palito). Olhei o apresentado com uma curiosidade nova e aguda. Enfim, eu encontrava, na vida real, um piauiense. Por um momento, deu-me uma vontade pueril e terrível de perguntar-lhe: — “Quer dizer que o Piauí existe mesmo?”. Conversamos alguns minutos (eu estava magnetizado pelas espinhas). Até o fim, o rapaz teve um olhar súplice, infeliz, de quem pede desculpas de não sei que faltas imaginárias. Por fim, despediu-se. Sua humildade era irrespirável (Rodrigues, 1996).
O que se depreende, porém, da fala do dramaturgo é uma crítica à ausência de referências sobre o Piauí e seu povo em âmbito nacional, a seu esquecimento, ao “silêncio ensurdecedor” que havia sobre o estado e à passividade dos governantes e do próprio povo.
Mas, e o Piauí? Nem uma palavra sobre o Piauí. Silêncio ensurdecedor. Eu próprio passo dez anos, quinze anos, sem pensar no Piauí, e sem ouvir-lhe o nome. Alguém poderia dizer como se falasse da Lua: — “Piauí não tem vida”. Graças às radiofotos fazemos uma idéia de paisagem lunar. Parece que lá em cima não há uma única e escassa lagartixa. Mas que noção temos nós da paisagem do Piauí? Quero crer que estejamos rigorosamente convencidos de sua inexistência. O silêncio que se faz sobre o Piauí é inédito. A única referência que temos, do seu povo e de sua terra, é o “meu boi morreu”. E o próprio estado, com um fatalismo bovino, não pede verbas, não pede nada, não exala um protesto (Rodrigues, 1996, sic).
Sua maior crítica é à humildade, que ele reconhecera no piauiense que haviam lhe apresentado. Já seu conselho é que o Piauí e seus habitantes se comportem com superioridade.
E o que mata é, justamente, a humildade. Dirão vocês que o Piauí tem a modéstia do pequeno, sim, a modéstia do pobre. […]
Nós precisamos de mania de grandeza, e repito: — a mania de grandeza é o nosso único luxo de subdesenvolvido. E, seguindo o estilo do Cinema Novo, o Piauí deve fazer pose de potência mundial (Rodrigues, 1996).
Como já contei aqui, quando cheguei a Brasília, faltando pouco mais de um mês para meu aniversário de doze anos, senti-me deslocada e discriminada (embora eu não me lembre de situações concretas de discriminação devido à minha origem). Então fui me adaptando, instintivamente arquivando aquilo que me identificava como piauiense e me fazendo brasiliense à força. Não negava minha naturalidade, mas também não a declarava aos quatro cantos.
Ainda hoje os piauienses sofrem essa distinção, causada pelo rótulo da seca e da miséria, um rótulo forjado, como revela Rabelo (2008). Em primeiro lugar, com o intuito de aproximar o Piauí dos demais estados da Região Nordeste, que passou a integrar tardiamente, em 1941. Logo em seguida, diante do esquecimento por parte do governo federal, como forma de atrair investimentos. A pobreza piauiense foi então repetida, até mesmo em textos de intelectuais, e acabou se convertendo em estereótipo.
Ainda nos ressentimos do desconhecimento, do esquecimento, do silêncio que parece sobreviver cinco décadas depois daquelas declarações de Nelson Rodrigues.
Existe também um ressentimento do olvido, uma mágoa de não se ter voz, uma lamento produtor de enunciados e também reprodutor das relações de poder que têm definido o que é ter ‘voz’ e quem são seus emissores (Rabelo, 2008, p. 14).
Mas, mesmo a distância, vejo que o Piauí e o piauiense têm se tornado cada vez mais reconhecidos, mais conscientes das riquezas culturais e dos talentos que formam o estado, mais cientes de seu lugar. Ao mesmo tempo, eu resgatei meu eu piauiense e sinto um orgulho danado quando ouço uma menção ao meu estado natal, às suas conquistas na educação, às suas belezas naturais quase inexploradas, à sua (à minha) gente.
Apesar de também não ter digerido muito bem a fala de Nelson Rodrigues quando a li anos atrás, concordo que os piauienses devem deixar de lado a modéstia e gritar que são tão bons quanto o restante do país e, em tantas coisas, até melhores (votar, por exemplo).
Referências:
RABELO, Elson de Assis. A história entre tempos e contratempos: Fontes Ibiapina e a obscura invenção do Piauí. 2008. 200 f. Dissertação (Mestrado em História) — Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/16920.
RODRIGUES, Nelson. Nunca houve tamanha solidão na terra. In: O remador de Ben Hur. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 103 – 106. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/rodrigues04/index.htm.
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