07 de outubro de 2020

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O que é literatura infantil?

Quem quer que tenha lido muitos livros para criança quando adulto provavelmente concordará que é o tipo mais gratificante de leitura […] (Hunt, 2010, p. 81).

Basta um livro conter texto e desenhos para ser considerado literatura infantil? Tudo o que se publica com essa denominação pode mesmo ser chamado de literatura? O que é literatura infantil?

Em minha experiência como professora eu li livros com/para meus alunos, especialmente os da educação infantil. Mesmo assim, não faz muito tempo que me tornei leitora (de verdade) de obras destinadas a crianças e jovens. Isso aconteceu, como contei aqui, quando constatei o óbvio: alguém que se propõe a escrever literatura infantil e juvenil (LIJ) deve conhecer o trabalho de quem veio antes.

Falando assim, pode até parecer que a LIJ me é utilitária, mas garanto que não. Embora eu tenha ampliado meu acervo e minha leitura com o objetivo inicial de aprender a escrever, logo os (bons) livros me conquistaram.

Bons livros

Definir o que é um livro bom ou um livro ruim não é tarefa simples, como comentei aqui. Quando se trata de literatura para o público não adulto, os livros geralmente são classificados em “bons para” (ensinar algum conteúdo, algum valor) ou apenas “bons”, como afirma Hunt (2010). Além disso, o que cada leitor entende por bom ou ruim tem mais a ver com a sua relação com a obra do que com a recomendação dos especialistas. Andruetto (2012) nos lembra que a nossa experiência com os livros é muito particular. Ela diz:

Ocorre com alguns livros: abrem em nós uma fenda que não nos permite esquecê-los (p. 35).

Isso acontece com leitores de qualquer idade. Muitos adultos se lembram dos livros que marcaram sua infância. E quantas vezes, já na maioridade, não lemos obras que continuam em nosso pensamento depois de dias, meses ou anos?

Para mim, esses são os bons livros, pois marcam o leitor e permanecem na memória. E não estou falando necessariamente dos clássicos, que, por vezes, se tornam clássicos porque certo grupo (com poder) assim decide e se empenha em conservá-los, como Hunt (2010) destaca. Refiro-me, tomando emprestada a ideia de Andruetto (2012), às obras que falam a cada um de nós, ao cânone que cada leitor constrói.

Considerando essa concepção: a de que cada leitor seleciona o que é bom ou ruim e faz sua própria interpretação, Hunt (2010) coloca um problema: como ficam a crítica, os clássicos, o juízo de valor? É o fim de tudo isso? Não, ele mesmo responde. O que precisamos, na realidade, é de uma avaliação com base em critérios objetivos e não na crença da qualidade literária como algo intrínseco — nem na canonização de autores, que Andruetto (2012) considera ainda mais perigosa do que a de obras. Os acadêmicos precisam repensar por que situam determinados autores ou obras acima de outros autores e obras, e cada leitor deve ter a possibilidade de aceitar ou contestar o cânone, conforme escolhas e vivências pessoais.

Hoje se publica uma vastidão de títulos para crianças em editoras diversas. Em geral, separados das demais produções, em seções denominadas “infantil” ou “infantojuvenil”. Muitas editoras ainda destacam em seu catálogo os aspectos ou temas que podem ser “trabalhados” por cada livro: solidariedade, relações familiares, diferenças etc.

Veem-se com frequência livros que não mexem com o leitor, não incomodam, não emocionam. São apenas um material pedagógico mais divertido, uma maneira de ensinar às crianças boas maneiras, valores e conteúdos escolares, ou produções que reproduzem formas e temas.

Além dos ensinamentos, não é raro se encontrar uma linguagem pobre nos livros infantis, devido a duas ideias equivocadas citadas por Hunt (2010):

  1. os livros para crianças devem ser necessariamente simples;
  2. os livros para crianças são triviais e dirigidos a uma cultura menor.

Quanto a isso, Andruetto (2012) assinala que a adjetivação da literatura para crianças (infantil) em nada contribui para o propósito de igualar essa produção literária à literatura geral, em termos de qualidade e de reconhecimento.

Outro fator que pode ser somado às concepções que rondam a literatura infantil é a necessidade, às vezes exagerada (ou talvez contraditória), de proteção das crianças nos dias de hoje — ao menos em determinados contextos. Isso faz com que escolas, mães, pais e a sociedade em geral demandem histórias com mensagens positivas e finais felizes e que autores e editoras priorizem tais livros (em um ciclo interminável).

A adaptação de obras literárias: dois casos práticos

Os exageros na proteção das crianças, assentado na crença de que elas são inaptas a lidar com determinados temas, já geraram a modificação de obras clássicas, com o intuito de adequar as produções ao que se imagina sobre a infância atual.

Hunt (2010) traz um exemplo dessa “atualização”: a realizada em A história de Pedro Coelho, de Beatrix Potter, quando reeditado na Grã-Bretanha, em 1987. O livro ganhou novas ilustrações (trocando-se aquarelas por fotografias) e alterações no texto, que simplificaram a linguagem e excluíram, por exemplo, a referência explícita ao tema morte.

Em um artigo de autoria de Rubens Valente (2020), intitulado Conta outra, a revista Quatro cinco um apresenta um caso recente de “atualização” no Brasil. Trata-se da coleção de contos de fadas disponibilizada pelo Ministério da Educação (MEC) no programa Conta pra mim. A coleção é, na realidade, como mostrou Valente, um reconto das histórias tradicionais.

Dei uma olhada em alguns dos livros, e a modificação dos textos citada no artigo pareceu evidente, assim como a simplificação. Dois casos notórios são os das histórias de Rapunzel (cuja gravidez é omitida) e de João e Maria (na qual o abandono das crianças pelo pai e pela madrasta é substituído pelo desaparecimento dos dois irmãos).

Ninguém nega que devemos cuidar de nossas crianças, mas podemos protegê-las de todos os males do mundo? Podemos ocultar delas o que ocorre na vida real? Se pudéssemos, isso seria honesto? Por que se quer oferecer aos jovens leitores textos que mascaram ou colorem em excesso a realidade?

Existem inúmeras adaptações de contos de fadas, que expressamente criticam ou parodiam as histórias originais (como os exemplos que apresentei aqui). Os recontos do Conta pra mim são apresentados ao público como se fossem as versões originais (as primeiras versões escritas), embora não mencionem os primeiros escritores, como o artigo da Quatro cinco um mostrou.

A pergunta que me fiz ao ler os textos então foi: se queriam adotar versões adulteradas, pobres, simplificadas, por que gastar tempo e dinheiro com a produção de novos livros? Há vários livrinhos no mercado sobre os contos de fadas, vendidos a preços baixos.

Valente (2020) chama a atenção também para a falta de notoriedade de um dos autores dos textos. E esse foi o único trecho do artigo do qual discordei. Não entendo como a ausência de reconhecimento público do escritor pode determinar, por si só, a qualidade de sua escrita. Concordo sim que o país é rico em escritores e ilustradores, muitos deles premiados, e que o MEC poderia ter aproveitado esses talentos. Aliás, poderia ter adotado algum (ou alguns) dos inúmeros títulos já publicados e diversificado os gêneros textuais da coleção.

O artigo ainda fala, por meio de especialistas, sobre a baixa qualidade das ilustrações. Além do texto e das ilustrações, acredito que o suporte contribui para falta de atratividade dos livros. Eles são apresentados em formato PDF. Se as famílias os imprimirem — como o comercial de TV parece sugerir — o farão em papel comum, provavelmente em preto e branco (caso isso seja realmente possível ao público-alvo preferencial do programa). Ler um texto em formato digital ou impresso em casa não é uma experiência igual a ler um livro com capa e miolo impressos em papel especial, em cores. Dizem que não se deve julgar um livro pela capa, mas, ao menos no meu caso, a aparência geral de um livro interfere muito no interesse que ele causa.

Afinal, o que é literatura infantil?

Poderíamos afirmar que literatura é um tipo textual sem uma função direta (diferentemente de um jornal, por exemplo, que buscamos com o intuito claro de nos informar). Mas, como Hunt (2010) nos lembra, queiramos ou não, a literatura infantil tem finalidades: a aquisição da linguagem escrita e da cultura é uma delas. E não há como desvincular a literatura infantil da escola, ainda mais se considerarmos que, no nosso país, o ambiente escolar é o primeiro — e talvez o único — lugar onde grande parte das crianças pode acessar livros. Sendo assim, a literatura infantil não seria literatura de verdade?

Particularmente não acho que a classificação em literatura ou não literatura seja tão relevante ou colabore com o propósito de conquistar leitores. Também não tenho certeza se ler livros com mensagens positivas e ensinamentos traz prejuízos às crianças (por vezes, as produções são feitas com o objetivo expresso de ensinar algo, mas podemos retirar delas algum outro aspecto, como no caso do livro que Joaquim segura na foto, que, com rimas, diverte um bebê ou crianças de cinco anos).

Por outro lado, defendo o direito das crianças e dos jovens de acessarem produções literárias belas e diversificadas. Reconheço também que, ao comprar e ler os tipos de livros citados antes, talvez estejamos desperdiçando tempo e dinheiro que poderíamos empregar em obras mais qualificadas, mais memoráveis. No caso do Conta pra mim, a situação é mais grave, já que se trata de recursos públicos e da formação de milhões de leitores.

Andruetto (2012) opina (e eu concordo) que os escritores podem se ocupar de qualquer tema na literatura infantil, desde que o texto tenha profundidade. Ou seja, conteúdos e valores não precisam ser expurgados dos livros infantis. Devemos, porém, estar atentos à forma como isso é apresentado: de maneira superficial, com o objetivo escancarado de ensinar e moldar pensamento e comportamento (alguns livros se entregam já no título), ou com maior complexidade, com esses aspectos fazendo parte de um enredo, de um contexto mais abrangente. Em outras palavras, ensinar pode até ser uma consequência dos livros infantis, mas não deve ser seu fim (“um bom livro ‘serve menos’ que um livro comum”, aponta Andruetto).

Acredito, porém, que não podemos nos despojar por completo daquilo que somos quando escrevemos. Além do mais, se a literatura se inspira na vida, ela conterá traços daquilo que nos rodeia. Mas quem escreve deve se comprometer (apesar de tudo) a se desviar da tentação de carregar sua produção de ensinamentos ou de repetir receitas que deram resultado, e se dedicar a construir obras de arte.

Como escritora aprendiz, sonho em produzir obras profundas, que repercutam nos leitores e sejam lembradas. Hoje minha escrita se tornou uma luta. E contra o que eu luto? Contra a ideia de que devemos sempre ensinar algo a crianças e jovens; contra a noção de crianças e jovens inocentes e despreparados; contra a vontade de agradar a todos; contra o politicamente correto; contra os meus próprios valores; contra meu inacabamento; contra mim mesma.

Não digo que já alcancei o nível de excluir ensinamentos dos meus textos. Não mesmo. Como eu disse, estou em constante luta e acho que demora para nos livrarmos desse condicionamento (ainda mais considerando que me formei exatamente para ensinar). Sou uma eterna caminhante, como propõe Andruetto (2012):

Escrever para buscar, sempre abertos à descoberta, ao risco, à surpresa. […] Prescindir de tudo que não seja o caminho. Ser sempre o caminhante, o que ainda não chegou ao destino, o passageiro em trânsito […] (p. 23).

E eu estou só começando.


***


Referências:

ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

VALENTE, Rubens. Conta outra. Quatro cinco um, 19 set 2020. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/noticias/politicas-do-livro/conta-outra.

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