A viagem prossegue morna e o tempo se estira. A janela do ônibus reflete uma aflição desmedida. Paisagem estorricada, sequidão nos riachos, arremedos de bichos no esboçado dos pastos. O sol do quase meio-dia ignora a maquiagem, retocada de instante em instante. As poucas poltronas ocupadas seguem silenciosas.
Quinze anos sem dar notícias. Uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu digerir rancores e reencontrar o sítio materno.
Pela enésima vez, apruma-se na poltrona, revolve os cabelos, recruza as pernas. As horas riscam o azulado do horizonte.
O trajeto remonta a figura do velho pai, olhos ressequidos, sobrancelhas grosseiras. Relembra o dia em que parou a lida e improvisou penteado numa espiga de milho. Apanhou para o resto da vida.
O pai definhou de desgosto, após flagrar os primos na cacimba. Pouco adiantou bater até arrancar sangue. Se é de se soltar, não há quem segure. O velho prostrou-se e morreu tempos depois.
Ainda jovem, decidiu sair de casa. Tinha sede de mundo. A mãe, D. Felícia, assentiu na escolha, com o olhar perdido no terreiro, arremessando milho às galinhas. Ela sobrevivia do marido. Durante o dia, era a serviçal aferrada aos caprichos do patrão. À noite, ele se esfregava, fétido dos bichos. Emprenhou-se algumas vezes, mas as crias não vingavam. Cinco deixaram de vir ao mundo. Três chegaram cedo demais e viraram anjos. Foi quando o velho arrumou uma criança para ela criar.
O estirão do itinerário desvela algo como um remorso. Tempo demais sem dar notícias à mãe. Não importa mais.
Saiu das brenhas dos Inhamuns para ganhar o Sudeste. Contava com os trapos do corpo e alguma convicção. Em postos de gasolina, acudiu homens de toda espécie para garantir trocado, até chegar a São Paulo, onde se ajeitou como manicure. A vaidade era a virtude em que se amparava. Cabelos longos, unhas vermelho-sangue, olhos cor de fumo, corpo eloquente, tudo impunha ares de solenidade. Aprendeu a transitar naquele mundo, entre grosserias e intimidações.
— Quem vai descer na Passagem da Onça?
A exuberância desorienta os passos. O salto agulha acentua a insegurança dos movimentos, escoltados pelo olhar inquiridor dos passantes. Não existe bagagem, apenas uma bolsa tiracolo. Sem segurança do caminho, solicita um mototaxista.
— O senhor sabe onde fica o sítio de D. Felícia? Morreu recentemente.
— Sei demais.
Repuxa o vestido, apruma-se na moto. Aos poucos, reconhece a trilha. O açude Poço Verde, a cancela da fazenda dos Mota, a cacimba, agora desativada.
— D. Felícia era mulher tão boa, decente… a senhora sabe, né?
— Com certeza.
No sítio, as coisas são estranhamente familiares. Piso de cimento queimado, forno de tijolos, quadros em feitio oval. À janela, o vazio que a mãe tanto gostava de alimentar.
Diante da penteadeira, frascos vazios de perfume, gavetões emperrados, o terço de D. Felícia. Ela se apegava ao tercinho toda vez que o marido inventava de brutalizar quem estivesse pela frente.
Depois de vasculhar outras lembranças, retoca a maquiagem pela última vez, apanha o terço e sai.
O vestido atrapalha e o salto afunda na piçarra. Deixa os sapatos para trás. Àquela hora da tarde, poucos se atrevem ao sol.
— Para que lado fica o cemitério, seu moço?
— Ali na frente, passando o Matadouro.
Aperta o passo. O calor é insuportável. Na entrada do cemitério, um senhor enfiado no chapéu aponta o lugar e desaparece. Felícia Neves de Araújo.
Não há mais o que fazer. Com força, aperta o terço da mãe contra o peito, fecha os olhos e move suavemente os lábios, como sussurrasse.
Estica o pescoço. Ninguém no cemitério. Apenas duas galinhas ciscando por ali. Pouco a pouco, vai se desfazendo. Tira as unhas postiças, os cílios. Enfia a mão no vestido e arrebata o enchimento do sutiã. Puxa a peruca e joga sobre o crucifixo que demarca o jazigo. Da bolsa tiracolo, saca um revólver. O cano na boca e o disparo. As galinhas alvoroçam, mas logo voltam a bicar a terra, porque, para elas, nada aconteceu.
*****
Sinval Farias é natural de Fortaleza/CE e professor de língua portuguesa há 25 anos. Atualmente, cursa o Mestrado em Estudos da Linguagem pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Ceará, e leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). É autor de crônicas, contos e poemas, alguns dos quais premiados em concursos locais e nacionais. Lançou, em 2020, o livro Coisas de sala de aula e outras crônicas.
O conto O bordado pelo avesso foi classificado em segundo lugar no Concurso literário Dois anos de Histórias em mim, promovido pelo blog.
Deixe seu comentário