Corri para a janela atraída por uma confusão de vozes. Seria mais uma discussão entre a senhora do cachorro, o casal com o recém-nascido e a família forrozeira? Logo percebi que meus vizinhos estavam apenas tentando acompanhar a cantoria do morador do 504, que agarrou o violão e dirigiu-se à sacada. Não era a primeira vez que ele se metia a artista ali. Só que antigamente (quero dizer, até a semana anterior), mandavam-lhe o síndico, tacavam-lhe ovos e discavam até para o 190 quando ele se punha a tocar, de dia ou de noite.
Nesse dia, seu talento intrigou os vizinhos.
— Quando tudo isto acabar — gritou um deles —, você nos oferecerá um show de verdade, meu amigo.
— Sim, logo poderemos estar juntos de novo — replicou outro.
— Viva o morador do 504 — disseram em coro.
O morador do 504 mesmo não deu resposta alguma. Não sabia exatamente como reagir. Passava dos sessenta anos de idade, pelo menos 45 deles dedicados a cantar em bares, praças e sacadas. Tinham sido tantas décadas cuidando daquele sonho; tantas noites ocupadas em alimentá-lo; tantas lembranças ao seu lado. Imaginara tantas vezes o dia em que os dois se separariam. Agora, que o sonho resolvera lhe dar adeus, o que seria do morador do 504, que durante anos havia sido um homem e seu sonho?
Até esse dia, seu público se resumia à esposa, porque os filhos tinham desistido de esperar pelo dia que o morador do 504 aguardava. Haviam passado toda a vida dividindo o pai com aquele sonho e previam que ele jamais o deixaria.
— O senhor já se divertiu — dizia o filho mais velho —, agora é hora de descansar.
— Papai, faça sua música só em casa mesmo — recomendava o filho do meio.
— Não esqueça que não é mais um jovenzinho — lembrava o filho mais novo.
Ele também não era mais bem-recebido nos bares. Os frequentadores e os donos dos estabelecimentos olhavam-no de travessa, questionando a presença de um vovô entre bêbados e dançarinas. Riam. Aconselhavam-no a ir para casa brincar com os netos e fazer palavras-cruzadas. Só não o enxotavam das praças, que afinal eram espaços públicos, ora essa, onde podia ficar e cantar quem tivesse vontade (ou às vezes não).
O silêncio do morador do 504 diante da aclamação pública se deu ainda por sua inabilidade com as palavras faladas. As palavras cantadas eram as únicas que se desgarravam de suas cordas vocais sem necessidade de pigarros ou tapas nas costas. Para a surpresa da esposa, porém, o homem soltou um monte de palavras faladas, de um sopro só, quando a plateia se retirou e as cortinas se fecharam.
— Eu não disse, mulher — comentou ele —, que cedo ou tarde os ouvidos se destampariam para a minha voz? Está certo que foi mais tarde do que cedo, mas isso não tira o gosto do sucesso que sinto em minha boca agora, como aquele doce que você faz de sobremesa. Não vou nem escovar os dentes hoje antes de dormir. Aliás, não vou dormir hoje. Chama os meninos pelo vídeo; quero contar que eles erraram na previsão. Meu sonho partiu.
Quando ele falava em sonho, era sonho mesmo, daqueles que temos ao dormir. Uma noite, em sua mocidade, sonhou que se apresentava ao estilo voz e violão, sob os olhares admirados de fãs, que gritavam seu nome e pediam mais. Aquele era um aviso, pensou ele, pois havia meses pedia para Deus ou sabe-se-lá-quem-estivesse-olhando-para-ele-do-céu uma resposta sobre a profissão que deveria exercer. O sonho então saltou do inconsciente e passou a segui-lo para qualquer lado.
Nas mais de quatro décadas que se sucederam, o morador do 504 não desistiu. É óbvio que precisou pedir outra resposta a Deus ou sabe-se-lá-quem-estivesse-olhando-para-ele-do-céu quando seus pais lhe advertiram que, até o final daquele ano, precisaria encontrar um emprego e outro lugar para morar e quando a esposa do morador do 504, que à época ainda era noiva (e não do morador do 504, já que era ainda o morador da casa dos pais), informou que carregava o primeiro filho deles no ventre.
Ele se despediu dos pais e foi dormir. Dormiu por três dias e três noites consecutivos, esperando um sonho revelador como aquele de dois anos antes. Ao acordar, não se lembrou de sonho algum. Então deixou o violão no canto do quarto (queria deixar o antigo sonho também; só que este não ficava sem ele de jeito nenhum). Partiu para o centro da cidade e bateu de porta em porta, de loja em loja, de escritório em escritório.
Voltou para a casa dos pais com a novidade: seria garoto de recados. Com o passar dos anos, foi promovido na empresa e se tornou um importante executivo. Porém, sempre que mirava o sonho, sentia que sua conquista não lhe valia de nada e dizia que um dia veria, de olhos abertos, a reprodução daquele primeiro sonho.
A emoção do morador do 504 ao terminar a apresentação na sacada se refletiu na esposa, que acompanhava sua luta fazia tantos anos, tantos anos mesmo que nem a deixavam fazer as contas de cabeça agora. Fora exatamente o sonho dele que a atraiu, não porque ela entendesse de música, mas porque também tinha sonhado uma vez em viver com alguém que tivesse um sonho. Sua única preocupação era a agitação do esposo, porque achava que sentimentos assim levavam ou a atos impensados ou a um ataque cardíaco — que não seria nada incomum em um corpo com tanta idade. Por isso, sempre que sentia alguma agitação chegando, respirava, contava até dez, respirava, contava até dez e respirava.
Fez uma chamada de vídeo para cada um dos três filhos e ouviu o homem narrar a mesma história três vezes, sem perder o fôlego.
— Alegro-me pelo senhor — disse o filho mais velho —, mas agora descanse.
— Papai, não torne seu canto uma obrigação — recomendou o filho do meio.
— Na sua idade não é aconselhável toda essa euforia — lembrou o filho mais novo.
A mulher respirou, contou até dez, respirou, contou até dez, respirou. Exausta, deu boa noite e foi se deitar sozinha, já que o marido havia se imposto uma vigília.
O morador do 504 permaneceu na sala, compondo uma música para a apresentação que planejava para a próxima noite. Foi um tal de escreve, apaga, amassa, rasga e recomeça. Queria algo alegre, mas não encontrava palavras. Mesmo que fosse todo alegria só lhe vinham à mente versos sombrios, que falavam de distância, de solidão, de medo, de morte. Chorou. Não sabia se pela excitação ou pelos sentimentos que lhe lotavam o peito.
A mulher voltou à sala. Viu-o afundado em bolinhas de papel e flagrou-o secando os olhos. Sem explicações, compreendeu. Beijou-lhe a face e disse:
— Venha descansar. O amanhã não se sabe o que nos reserva. O presente é o que temos. Por isso, fiquemos juntos hoje, um ao lado do outro. Assim a tristeza não ousará fazer morada.
No dia seguinte a notícia nos chegou por mensagem do síndico: Despediu-se o morador do 504. Neste momento, ele se junta ao coro de anjos que já representava aqui na Terra, usando sua voz para contar histórias, falar de amores, desenhar sorrisos, tocar almas e produzir lágrimas.
Os vizinhos se reuniram nas varandas para cantar, em sua homenagem e à capela, a mesma música com que ele nos tinha emocionado na noite anterior. Não sei se foi Deus ou sabe-se-lá-quem-estivesse-olhando-para-a-gente-do-céu que nos acudiu. O fato é que nós mesmos não nos reconhecemos, cantando daquele jeito tão cheio de tom, como um coral que ensaia toda semana. Um viva ao morador do 504 ressoou longe, acompanhado de aplausos.
Do apartamento 504, a mulher pareceu ouvir o marido narrando outra vez a partida do sonho e, dessa vez, agradecendo aos fãs. Encontrou na mesa de centro o rascunho da canção que ele compunha. Apenas três versos breves:
Não chores
Se meu adeus se impor
Em dia de riso.
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