Acho que existem crianças mais solitárias que os velhos.
Imagine uma menina de onze anos, solitária, cheia de perguntas e ideias próprias sobre a vida e o futuro. Essa é a descrição de Maria Carmem, a narradora-protagonista de Se deus me chamar não vou.
Não pense, porém, que essa é uma obra para crianças. É uma obra para adultos narrada por uma criança e me fez recordar O olho mais azul, de Toni Morrison, embora os enredos dos dois livros não sejam semelhantes. Recordei este livro apenas pela escolha narrativa e pela possibilidade de refletir sobre o mundo pelos olhos de uma criança.
Se deus me chamar não vou também não é uma história relacionada a religião, como o título pode levar a supor, mas traz questionamentos da menina acerca da existência de Deus. É um texto fluido, que pode ser lido em pouco tempo.
Publicado em 2019, o livro foi escrito por Mariana Salomão Carrara, que é defensora pública e publicou também a coletânea de contos Delicada uma de nós (2015) e o romance Fadas e copos no canto da casa (2017).
Antes de ler Se deus me chamar não vou, vi um comentário que avalia a linguagem da narradora incoerente para uma menina de onze anos. Eu, no entanto, não senti essa estranheza e julgo até que o aspecto mais atraente da narrativa seja o fato de Maria Carmem questionar as atitudes dos pais, o meio escolar, o comportamento dos colegas de forma mais madura. E quem pode dizer que não exista uma Maria Carmem por aí?
Minha mãe diz que quando eu for mais velha todos esses colegas que eu hoje admiro vão me causar pena e eu vou rir dessa minha inveja. Mas quando eu for mais velha vou precisar de fraldas e andadores e meias de compressão, então essa risada não vai me valer de muita coisa.
A protagonista está escrevendo um livro com a ajuda da professora e opta por narrar sua própria história, pois acha que somente quando for escritora poderá contar a história dos outros.
Eu não tenho ainda um papel de escritora, mas achei que este ano está sendo um ano que merece estar num livro, e, como o ano é meu, pode muito bem estar num livro meu. Esse ano acaba sendo também dos meus pais, porque na minha idade as coisas costumam ser todas deles.
A menina vive com os pais e ajuda na loja da família, que chama de “loja de velhos” porque comercializa produtos para o público da terceira idade. Em meio aos objetos dessa loja, Maria Carmem vai se indagando e criando suas respostas. Na escola, ela se sente excluída e diferente dos colegas.
A história é repleta de temas recorrentes na pré-adolescência, como o questionamento da beleza, o sentimento de solidão e de inadequação, um medo por vezes sem sentido e a impressão de que aquela fase nunca acabará.
Quando você está em banho-maria as pessoas só vão contando as coisas que você pergunta, mas você nem imagina quais perguntas poderia fazer. E isso vai fazendo o banho-maria durar uma eternidade.
Por ser essa uma narração de uma menina de onze anos, houve trechos em que eu não sabia se ria ou chorava com as falas da protagonista. Isso porque ela tem excelentes sacadas sobre o mundo ao seu redor. E, com tudo o que relatei aqui, só posso dizer que vale a pena refletir, se surpreender e se divertir com Maria Carmem, a história inusitada de seus pais e sua loja de velhos.
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