Quarta-feira, 3 de julho de 1985.
Minha filha,
É provável que tenha escutado sobre minha saída de casa, mas não sei de que forma a história chegou aos seus ouvidos. Os fatos costumam ter versões diferentes a depender do narrador, você deve saber, e não necessariamente porque alguém esteja mentindo. Apenas porque cada um tem a própria forma de enxergar a situação.
Dei voltas até agora para não encarar o assunto. Não tinha encontrado o melhor jeito de falar disso com você. Não quero dizer que sei agora como me explicar, porém não posso mais guardar tanta amargura em mim. Também tenho o direito de contar minha versão, assim como você merece conhecê-la.
Não é exagero dizer que aquele foi o pior dia da minha vida. A noite já se convertia em madrugada e, mesmo assim, não aguardei o nascimento do dia seguinte, quando a claridade poderia me demover da ideia, como as pessoas costumam dizer. Arrumei uma mala com tudo o que realmente me pertencia: três peças de roupas e aquela fotografia.
Você acordou com a discussão entre mim e seu pai e veio à sala. Perguntou por que eu chorava e me beijou. Antônio então arrastou você de volta para o quarto, onde permaneceu por muito tempo.
Assim que seu pai retornou à sala, tentei recomeçar a conversa, que ele não escutou, concentrado em repetir as minhas alternativas: ou saía de casa ou ficava com você — as duas coisas, para ele, não poderiam andar juntas.
Ainda chorando, fui ao seu quarto e a observei dormir, tão tranquilamente como se não tivesse acabado de se deitar. Minha criança, tão pequena, tão inocente, nem sabia o que ocorria ali.
De súbito, você reabriu os olhos e me pediu para me deitar ao seu lado, como eu fazia com frequência. Enxuguei as lágrimas e atendi ao seu pedido: a abracei e acariciei seus cabelos até fazê-la dormir outra vez.
Dei até logo ao seu pai, reforçando o motivo da minha partida. Esperava que ele se comovesse com meu sofrimento. Mãe e filha não deviam se separar, eu argumentava. Ele, porém, sequer virou o rosto em minha direção e ordenou que eu me retirasse de uma vez e jamais retornasse.
Sabe aquele dia em que esquecemos o Dudu? Você não recordará o sentimento que a fez chorar sem controle e me obrigar a caminhar em volta da praça. Hoje posso imaginar o que sentiu. Experimentei o mesmo sentimento ao deixar a casa. Quero dizer, me senti ainda pior porque foi minha a decisão de sair dali.
Tomá-la não foi fácil, aliás, para alguém que nunca havia resolvido qualquer coisa por conta própria, aquela não era a decisão mais adequada para começar, mas ela se apresentou a mim e eu a agarrei.
Com amor,
Neusa
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