[…] cada um é engrenagem da grande máquina de produzir fascistas alimentada com o combustível do ódio. Parar essa engrenagem só será possível para aquele que aprender que outro mundo, além da emoção perversa que tantos têm como o estado de coisas odiento, é possível (p. 34).
Publicado em 2015, Como conversar com um fascista analisa o autoritarismo crescente naquela época, mas se encaixa perfeitamente como retrato do Brasil de 2019.
Na primeira página do meu exemplar lê-se “07/01/2016”, a data em que o comprei, quando comecei a suspeitar que precisava aprender a conversar com pessoas que não aceitam outros pontos de vista ou outras formas de levar a vida.
Confesso que iniciei a leitura naquele mesmo dia, mas esqueci o livro durante esses mais de três anos. Agora o resgatei, pois vejo que não haveria momento mais apropriado do que a atualidade para retomar aquela aprendizagem.
Além de escritora, Marcia Tiburi é filósofa e ativista. Publicou outros livros relacionados a política, entre eles Feminismo em comum, Ridículo político e Delírio do poder. Em 2018, candidatou-se ao governo do Estado do Rio de Janeiro.
Em Como conversar com um fascista, a autora descreve o fascismo como a radicalização do autoritarismo, que, por sua vez, é “o empobrecimento dos atos políticos pela interrupção do diálogo” (p. 23) e “um modo antidemocrático de exercer o poder” (p. 25).
Já o fascista é aquele que despreza, rotula o outro e deseja seu desaparecimento; discursa com segurança sobre os mais variados assuntos, sem qualquer conhecimento; cospe verdades; rejeita o diálogo; distorce as falas dos demais. Ou nas palavras de Tiburi:
O que chamo de fascista é um tipo psicológico bastante comum. Sua característica é ser politicamente pobre. O empobrecimento do qual ele é portador se deu pela perda da dimensão diálogo. […] O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser. […] Fechado em si mesmo, o fascista não pode perceber o ‘comum’ que há entre ele e o outro, entre ‘eu e tu’. […] ele luta contra o amor e as formas de prazer em geral. […] É um sacerdote que pratica o autoritarismo como religião e usa falas prontas e apressadas que sempre convergem para o extermínio do outro, seja o outro quem for (p. 23-24).
Percebem-se quatros pontos centrais na definição de Tiburi do comportamento fascista, pontos estes interligados: a relação com o outro, o medo, o ódio e a linguagem.
A relação com o outro
O outro é aquele que o fascista nega, é aquele sobre quem o fascista propaga verdades e em nome de quem fala, sem se aproximar dele, sem buscar conhecê-lo. O fascista não se esforça para realizar essa aproximação — isso é desnecessário — porque já tem uma opinião formada sobre o outro (as minorias sociais, outra cultura, uma ideia divergente, a natureza, o saber etc., qualquer coisa/pessoa que não seja ele mesmo). E se orgulha de seus pensamentos.
Mas o fascista também sente medo do outro, porque esse outro é uma ameaça à ordem preestabelecida, “o outro é diferença demais para sua cabeça” (p. 27). Por isso, o outro é transformado em um inimigo a ser combatido.
Um exemplo de outro citado por Marcia Tiburi oportuno nos nossos dias são os indígenas, tratados com curiosidade, por um lado, e com ódio, por outro.
O ódio aos indígenas se fundamenta no argumento de que esses povos e seu modo de viver são sinônimos de atraso ao desenvolvimento do país, como se o crescimento econômico valesse mais que suas vidas. Além disso, os outros se autointitulam porta-vozes dos indígenas e se acham capazes de determinar seus interesses (“eles querem ser como nós”), como se eles não pudessem falar por si mesmos.
Desde muito pequena, escuto que os índios são preguiçosos, não fazem qualquer coisa e ainda são mais protegidos do que qualquer outra pessoa. Além de serem baseadas em uma ideia preconcebida, creio que essas afirmações são calcadas na inveja.
O medo
Tiburi explica que o medo é fomentado no dia a dia, por meio da televisão ou das redes sociais, com imagens terríveis de violência ou com ideias intencionalmente distorcidas sobre o outro. Isso aconteceu em grande escala durante a campanha eleitoral, quando se propagaram inverdades em que muitos eleitores quiseram acreditar e ainda compartilharam com seus amigos e familiares (“o país vai virar comunista”, “será implantada uma ditadura gayzista”, “vamos nos tornar a Venezuela”, só para citar algumas das falácias mais famosas).
Esse sentimento é geralmente estimulado com manipulação, mentiras, distorção das falas do outro, generalização do comportamento de um indivíduo para todo um grupo.
Quanto a essa última estratégia, pode-se citar como exemplo um caso recente: o assassinato bárbaro do menino Rhuan pela própria mãe e sua companheira. Devido à orientação sexual das acusadas, esse caso foi utilizado de imediato, de forma desonesta, para provar um ponto de vista bizarro: o de que a “ideologia de gênero mata”.
Sem falar da falsidade da ideologia de gênero em si, é imoral querer convencer a opinião pública de que, tais como a mãe do Rhuan e sua companheira, todos os casais de lésbicas cometeriam um ato como aquele com os filhos.
O ódio
Tiburi explica que o ódio, assim como o amor ou qualquer outro sentimento, não nasce conosco. É aprendido e compartilhado, mas também pode ser manipulado por meio da produção do medo, da repetição de discursos odiosos, tão comuns hoje em dia, e da criação de uma inconsciência coletiva. E esse ódio não é direcionado apenas a pessoas, mas também à política, ao poder público, à democracia.
Segundo a autora, mesmo que os líderes políticos, os jornalistas, os influenciadores, aqueles que têm poder de expressão, tenham a possibilidade de incitar o ódio, somente essa ação não é capaz de mantê-lo. O que o sustenta é sua partilha entre os pares. Por outro lado, a destruição do ódio depende do diálogo.
Não acabaremos com o ódio pregando o amor, mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente (p. 38).
A pergunta que fica aqui é: por que o ódio é tão mais facilmente aprendido e espalhado que o amor, o respeito e a empatia?
A linguagem
O fascista não para de falar. Afinal, é por meio dos discursos que sustenta a negação do outro, provoca o medo e o ódio, interrompe o diálogo.
Circulam livremente opiniões sem embasamento, falsos argumentos, falácias, repetições de discursos prontos, sob o argumento da liberdade de expressão. Sobra senso comum e falta reflexão.
As redes sociais são o principal instrumento desse fenômeno. Isso porque, ao mesmo tempo que deram voz a todos e permitiram a conexão entre diferentes pessoas (o que poderia servir ao fortalecimento da democracia), abriram espaço para a expressão de pessoas pouco preocupadas com a verdade, com a ética, com o respeito às demais e também aos indivíduos altamente manipuláveis (aqueles que não pensam, apenas repetem o que os outros dizem).
Para combater esse uso excessivo e descompromissado da fala, que Marcia Tiburi denomina “consumismo da linguagem”, é necessário questionar o nosso conhecimento, o que, como a autora afirma, não nos torna pessoas sem inteligência, mas mostra humildade de reconhecer que não podemos saber tudo.
Marcia Tiburi aposta no diálogo como ato de resistência ao fascismo e tem esperança no papel das redes sociais na construção da prática dialógica.
De fato, com mais diálogo não haveria espaço para o crescimento de pensamentos e práticas autoritárias. Porém, como Tiburi esclarece, o diálogo não se resume a uma conversa; exige a abertura ao outro, a desconstrução de certezas, uma transformação pessoal nos sujeitos que delem participam. O diálogo só acontece de verdade quando há generosidade, escuta e compreensão do outro. Portanto, ele é um desafio, pois depende da disposição de todos os envolvidos. Além disso, falar com aqueles de quem discordamos é mais difícil que falar com aqueles que compartilham de nossas opiniões.
Acredito que a reflexão contida nesse livro é essencial em nosso tempo. No entanto, terminei a leitura ainda me sentindo incapaz de conversar com um fascista. Afinal, como dialogar com pessoas fechadas para opiniões diferentes, que repetem discursos prontos e apelam para o ataque pessoal ou ameaças quando discordam de alguém? Talvez essa conversa seja impossível. E essa conclusão não é muito reconfortante. A própria autora viveu isso na prática quando deixou o país, no início deste ano, após ser ameaçada de morte.
O que quero dizer é que interromper a onda fascista provavelmente dependa mais dos próprios indivíduos que foram levados por ela do que daqueles que os observam da areia, como a própria Marcia Tiburi escreve no trecho destacado no início deste texto. No entanto, os que assistem a tudo de fora também podem colaborar, não necessariamente tentando convencer os outros (que talvez seja uma ação inútil), mas evitando não ser carregado pela onda. Para isso, devemos nos questionar o tempo todo e vigiar nossos próprios pensamentos, falas e atitudes, pois não somos imunes ao ódio, ao medo, à negação do outro, à recusa ao diálogo. Aliás, já podemos ter sido tocados por tudo isso sem nem nos darmos conta.
Nessa luta, o livro pode nos prestar grande auxílio. Com o esforço de aprender a dialogar, como Tiburi aponta, se não pudermos conversar com um fascista, pelo menos podemos impedir nós mesmos de nos tornarmos também fascistas. Por essa razão, penso que um título mais adequado para a obra seria Como não se tornar um fascista.
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