Ela não sabe há quanto tempo está ali, no mesmo lugar, vendo os mesmos humanos passarem dia após dia, com olhar fixo no horizonte, acelerados, como quem tem pressa de alcançar a linha de chegada. Deve haver uma recompensa ao final da caminhada de cada um, ela imagina, o pote de ouro no fim do arco-íris, como ouviu um sujeito dizer certa vez. Queria ela também receber aquele prêmio. Mas preferiria um pote de sorvete, a sobremesa intrigante que as pessoas tomam com uma careta sorridente.
Ela não sabe há quanto tempo está ali. Tenta puxar pela memória, mas lá não há qualquer calendário ou relógio. Ninguém lhe ensinou quantas horas há no dia, quantos dias há no mês e quantos meses há no ano. Ela também não conseguiria calcular. Tem apenas a sensação de já ter visto o sol nascer e se pôr muitas vezes daquele ponto. Talvez tenham se passado vários meses ou anos.
Lila. É assim que a chamam. Não se sabe por quê. Esse não é seu nome verdadeiro, que ela nem conhece; sequer sabe se o recebeu. Mas para que ia querer outro? Lila é suficiente. LI–LA. Faz um som que ela gosta de ouvir. L–i–l–a–Lila — um dia uma senhora a ensinou a escrever, uma daquelas que aparecem e somem de repente, mas sempre deixam palavras que Lila pouco entende, embora a façam sentir aconchegada.
À noite, Lila se ajeita sobre uma cama dobrável, guardada toda manhã em um esconderijo, ao lado de outras tantas camas iguais. Dá boa noite aos vizinhos, que dormem num segundo, como se já tivessem se deitado desacordados. Enquanto isso, ela olha para o céu e se pergunta quanto tempo levaria para apagar cada uma daquelas luzinhas, que devem ser mais de dez, o último número que aprendeu a contar. E o sono vem a passos lentos, mas quando chega não a deixa pensar muito mais.
Há noites em que Lila e os vizinhos se apertam, quando o inverno vem tocar sua pele com dedos gélidos. Às vezes, humanos como aqueles que ela vê diariamente aparecem, ainda com a mesma pressa, alguns mantendo o olhar longe dali, e oferecem um calor artificial. Mesmo assim, Lila e os vizinhos torcem que aquele arrepio logo se vá e traga de volta os braços calientes das próximas estações, encerrando a batalha das cobertas.
À luz do dia, seu quarto se transforma e recebe a visita de tanta gente, de seu tamanho ou ainda maior, que passa e repassa com euforia, sem saber que ali é também a casa de alguém. E ela não pode nem se achegar, nem olhar mais de perto, porque, nessas horas, há sempre um olho alerta, uma cara séria e um dedo apontado que, sem palavra alguma, obrigam Lila a dar meia volta.
Às vezes, Lila desobedece e se esconde só para ver quem e como são aqueles humanos de quem não pode se aproximar. E, olhando daquele ângulo, por trás de uma coluna, não vê diferença entre eles e ela. Da distância onde se encontra, consegue ver que eles não têm nada além do que ela tem, a não ser por aquilo que carregam nos ombros ou nas mãos. E o que será que há de tão valioso ali nas sacolas que levam?
Todo dia Lila e os vizinhos saem em exploração. Com um pouco de sorte, descobrem riquezas em que outros, antes deles, não viram valor. Mas há dias em que, mesmo depois de uma busca exaustiva, com desembaraço e olhar atento, voltam de mãos vazias.
Enquanto procura, Lila observa os cartazes com pratos sempre cheios de alimentos coloridos, que, olhando assim, não se parecem com as riquezas que ela e os outros localizam. Por trás de vidros, vê esses mesmos pratos cheios diante de humanos impacientes, que, por vezes, os abandonam quase do mesmo jeito, sem reconhecer a grande fortuna à sua frente.
Já tentaram afastar Lila dali. Chegaram numa noite, antes de o sono conquistá-la, e levaram Lila e os vizinhos num carro grande e esquisito. O destino foi um lugar com camas enfileiradas — Lila e outras crianças para um lado e os adultos para o outro. Havia um teto e comida fácil, sem necessidade de exploração. Mas Lila sentiu falta das luzinhas, da possibilidade de ir a qualquer parte e da companhia dos vizinhos. Os outros também pareceram sentir e escaparam no primeiro descuido dos sentinelas. Deixaram Lila para trás, acharam melhor que ficasse. Ela, destemida que era, encontrou o caminho de volta, seguindo sua intuição.
Agora, sempre que percebe um carro como aquele se aproximar, seja dia ou seja noite, Lila desaparece, como a lua faz toda manhã. Treina com afinco a técnica do desaparecimento e vem aprimorando seu talento, tanto que acredita ser esse seu superpoder. Mete-se numa multidão sem atrair olhares e observa, um a um, os pedestres. Para onde estariam a olhar? Será que ali, logo adiante, há algo que Lila não é capaz de enxergar?
Sua habilidade também falha vez ou outra, porque mesmo em meio à multidão há um olhar vigilante ou um olhar descuidado, que olha em sua direção sem vontade. Nesses momentos, Lila receia que seu poder não seja mais super. Sente uma ponta de medo e um arrepio mais forte que os do inverno. Não sabe traduzir os olhares, mas entende que uma face carrancuda, uma testa franzida ou dois passos para trás não são sinais de boas-vindas.
Foi num dia assim, enfraquecida pela kryptonita, que viveu um encontro diferente. Lá estava ela. Marrom. Com pelo ralo. Suja de barro. Com olhos cor de mel vidrados em Lila. E essa foi uma das poucas vezes em que Lila não viu ameaça num olhar tão indiscreto. Ela seguiu Lila por todo o caminho e se deitou ao lado da menina na cama dobrável, sem esperar ser convidada. Lila achou graça daquela criaturinha ousada e a aceitou em seu quarto e em sua vida.
Desde então, Lila só anda acompanhada de Lola, como resolveu chamá-la. E as duas caminham juntas para lá e para cá ou Lila carrega Lola no colo, bem protegida, como seu único tesouro. Lila passou também a redobrar a atenção à chegada do carro esquisito, pois dizem que lá onde Lila e seus vizinhos tinham estado Lola não poderia ficar.
De vez em quando, os humanos afobados vêm em um tempo quente, com roupas e gorros vermelhos, com músicas e sinetas. E, de um grande saco, um senhor de cabelos e barba brancos retira pacotes de vários tamanhos e os distribui com agilidade, sem saber ao menos a cor dos olhos dos expectadores. Muitos outros começam a parar por lá na mesma época, como se não tivessem mais tanta pressa de chegar a outro lugar. Deve ser ali que o prêmio se encontra agora, Lila supõe. Deve ser para lá que se mudou a linha de chegada.
Da última vez, Lila recebeu um objeto estranho e o analisou de cima a baixo. Era colorido e chamativo. Emitia um som repetido e piscava luzes brilhantes. Mas o que poderia fazer com aquela coisa sem sentido? Queria mesmo ter ganhado aquele aparelho curioso que os humanos vivem encarando na palma da mão.
Tempos atrás, um daqueles humanos retornou, dessa vez sozinho e sem os apetrechos. Conversou com um dos vizinhos de Lila e saiu na companhia de uma das crianças, a menor de todas. Lila ainda não compreendeu para onde seu pequeno vizinho foi. Ninguém lhe explicou. Mas uma voz dentro dela dizia que não o veria mais. E não esquecia a cara de choro que o viu fazer quando o homem o carregou para o interior de um carro branco.
Certo dia, viu o mesmo carro passar na avenida ali perto. Dentro dele, o tal humano e o antigo vizinho cantavam e gargalhavam. Lila sorriu também e até levantou a mão para acenar. Mas eles olharam para ela de relance e viraram para o lado oposto. Lila sentiu aquela pontada, que agora não era de medo. Voltou para perto dos outros sem entender por que as lágrimas tinham resolvido se apresentar.
Lila sempre pensa no vizinho que se foi. Para onde teria sido levado? Não para o lugar com camas enfileiradas, ela aposta. Ele parecia contente, como se finalmente tivesse sido premiado. Enquanto ela agora se sente diferente. Não sabe explicar o que mudou, muito menos por quê. Reconhece apenas que, de repente, até as luzinhas deixaram de ser fascinantes. Em algum lugar, haveria para ela também um prêmio?
Ela não sabe por quanto tempo permanecerá ali, vendo a correria cotidiana dos humanos, esperando o pote de sorvete, espreitando por trás de uma coluna ou de uma parede de vidro, contando as luzes do céu, apertando-se contra os vizinhos para espantar o frio, saindo em exploração todo dia, treinando seu superpoder, sentindo o toque do medo, recebendo objetos coloridos, aguardando a chegada de um carro branco, torcendo por sua recompensa.
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