Naquele tempo havia muitos quintais e lotes vagos. E era tudo arborizado, tanto em nossa rua como em todo o bairro (p. 2-3).
Esse foi o primeiro livro que li para o Joaquim, quando ele ainda era parte de mim. Não sei se ele escutou minha voz ao ler a história. Só sei que me emocionei ao lê-la — tanto pelas circunstâncias da leitura, quanto pela história em si (e não era a primeira vez que eu lia o livro para mim mesma).
Publicado pela primeira vez em 2008, dois anos após a morte do autor, O matador foi ilustrado por Odilon Moraes, que usou desenhos que, à primeira vista, parecem simples, sem cor. Mas, quando se conhece a história, percebe-se a intenção do ilustrador. As imagens, em tons esverdeados, ganham cor forte apenas em dois momentos, avivando o sentimento que nos causam as palavras inscritas naquelas páginas.
Wander Piroli foi um escritor brasileiro um pouco esquecido, que, na década de 1970, conciliava o trabalho de jornalista com o de contista. Com uma forma direta de escrever, trouxe um ar realista à literatura voltada para crianças e jovens, indo contra a tendência moralista, o que se pode ver só pelo título de outro livro infantil de Piroli: O menino e o pinto do menino (OLIVEIRA, 2018).
O matador é narrado em primeira pessoa por um menino que tem um grande desejo: matar pardais, assim como fazem todos os meninos de sua rua. Aliás, tirar a vida desses pássaros parece a brincadeira preferida daquela turma, em que todos são ótimos de pontaria (todos, exceto um: justamente o narrador da história).
O livro começa com uma descrição do local e da época em que a história se passa, como se vê no trecho que usei no início deste texto. Fala-se em quintais, terrenos baldios e árvores — coisas que não são muito vistas em cidades grandes hoje em dia. Esse quadro, portanto, remete a um tempo diferente do atual e causa nos mais saudosos a tentação de exclamar: “aquilo que era infância”. Temos até a impressão de estarmos diante de um texto leve e divertido.
Os garotos da rua, incluindo o narrador, andam sempre munidos de seu bodoques (seus estilingues ou, como diríamos no Piauí, suas baladeiras) e de uma porção de pedras. Mas, enquanto seus amigos acertam o alvo e tiram a vida dos passarinhos, o menino sequer bota medo em algum deles, que parecem zombar de sua falta de habilidade com aquele instrumento.
Às vezes o pardal nem se dava ao trabalho de fugir. Continuava no mesmo lugar. Tinha impressão de que me gozava, na certeza de que não corria nenhum risco (p. 8).
Mas chega o dia em que o desajeitado bodoqueiro consegue acertar em cheio em um pardal que, como os outros, não acreditava em sua pontaria. No entanto, não há ninguém por perto, naquele momento, para presenciar o ocorrido. Além disso, o resultado e a sensação não são como o garoto imaginava.
A narração que se segue, somada àquele toque de cor de que falei, nos faz imaginar exatamente como o menino se sente. Dá pra sentir aquela dor que parece morar dentro da gente sem data de partida: é a dor de ver alguém machucado por culpa de nossas mãos (de nossos atos, de nossas palavras).
Não pude não pensar em duas coisas ao ler essa história. A primeira foi que, muitas vezes, queremos ser iguais aos outros, sem nem desconfiar o que isso pode nos custar. A outra foi que todos nós, mesmo ainda crianças, somos capazes de alguma crueldade para alcançar nossos objetivos.
Por ser esse um livro tão direto, sem qualquer receio de tratar da morte ou da maldade humana, pode ser que muitos adultos tenham medo de apresentá-lo às crianças. Porém não concordo em proibir a elas temas com os quais temos dificuldade de lidar, pois acredito que, com esse contato desde cedo, elas saberão encará-los com mais naturalidade do que nós e terão uma visão mais realista do mundo (que não é feito de príncipes e princesas ou de bichos falantes). Também não há maneira melhor de abordar tais temas do que com um livro que retrata de maneira tão tocante o lado sombrio do ser humano.
Referência:
OLIVEIRA, André de. Wander Piroli, o Hemingway esquecido das Minas Gerais. El País, 22 jul. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/20/cultura/1532115699_984086.html>. Acesso em: 23 jul. 2019.
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