11 de agosto de 2018

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Cartas para Marilu (n° 1)

Por Eriane Dantas

Sexta-feira, 21 de junho de 1985.


Marilu,


Há exatos quinze anos, ser brasileiro significou fazer parte de uma nação gloriosa. Pelé, Gerson, Jairzinho e seus companheiros foram laureados heróis nacionais. E, com o cotidiano suspenso por um dia, colorido de verde e amarelo, a televisão uniu os brasileiros para acompanhar noventa minutos de encantamento, pela primeira vez em tempo real. Foi duro retornar à realidade no exterior daquela caixa de imagens e sons. A voz contida por quase uma década se converteu em um grito, cujo eco os brasileiros queriam fazer durar mais tempo.

Minha rotina também se alterou naquele dia, embora por uma razão diferente. Não assisti àquela partida final. Enquanto o país, envolvido com as cores da bandeira, mandava vibrações para que a seleção canarinho superasse a italiana, eu me preparava para conhecer você e torcia que nosso encontro não demorasse a acontecer. E tive uma certeza ao saber o resultado do jogo: sua chegada naquele dia não foi coincidência; significou que você traria tanto orgulho e tanta alegria para nossas vidas como a taça havia trazido para o Brasil.

Você em meus braços foi como um bálsamo. Tocando em sua pele macia, sumiram até mesmo as dores a que a longa espera havia me submetido. Sem mais nem menos, tive vontade de sorrir. Como não sorrir ao contemplar sua face avermelhada, seu corpo gorducho, sua cabecinha cabeluda e o nariz mais redondo já visto?

Depois do seu primeiro choro, que me fez chorar também, você se acalmou pouco a pouco quando a aconcheguei em meu peito por orientação da enfermeira. Seus olhos continuavam cerrados, como se receasse encarar o mundo. Mas era como se soubesse quem eu era. E quem dirá que não sabia? Apesar de ser aquele nosso contato inicial aqui fora, nos conhecíamos bem. Você reconhecia minha voz. Seu rosto e suas formas eram exatamente como eu havia imaginado.

Sua vermelhidão não diminuía. O médico, porém, não viu nisso qualquer anomalia. Com o tempo, a cor da sua pele se ajustaria. Preocupei-me então com a temperatura do quarto, enchi você de agasalho, a segurei com a máxima delicadeza, como se tocasse em uma boneca de porcelana. Causei risos na enfermeira e nos visitantes com meus cuidados extremos. Os olhares deles me lembravam que outras tantas crianças haviam chegado antes de você. Como eram ingênuos! Não me importavam as centenas de bebês que aquela maternidade havia recepcionado — era como se nenhum deles existisse. Você era única e eu, a primeira mãe.

Hoje faz quinze anos que comemoramos o tricampeonato mundial da seleção brasileira de futebol. Faz quinze anos também que vivi a única experiência que minha memória jamais perderá. De lá para cá muita coisa aconteceu: ainda não conquistamos o tetracampeonato, mas alcançamos um prêmio maior para o país. Durante esse tempo, você se distanciou dia após dia daquele bebê rechonchudo e se tornou essa moça de quem tenho as mais bonitas notícias.

Então, por que só hoje resolvi escrever? Saiba que essa ideia me persegue há tempos. Várias vezes iniciei esta mesma carta e várias vezes fiz o papel em pedaços. Por mais insuportável que tenha sido o silêncio entre nós e por maior que tenha sido minha vontade de gritar meu sentimento, precisava esperar até você alcançar idade suficiente para me compreender. Talvez eu também esteja inebriada pelo clima da democracia. Escuto as pessoas falarem que enfim recuperamos nossa liberdade. Agora podemos expressar o que pensamos. Também desejo ser livre, Marilu. Também tenho o que dizer.


Com amor,

Neusa

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